domingo, 6 de dezembro de 2009

Iniciação à teoria estocástica

Marcelo Papini

"Pour beaucoup d’esprits, une probabilité
calculée à sept ou huit décimales près est
beaucoup plus convaincante qu’un argument fondé
sur des considérations qualitatives. Ces esprits
oublient que si le calcul en question est fondé
sur des éléments statistiques, qui ne sont donc
pas numériquement précis, le nombre de décimales
est une pure illusion. Ce nombre fait croire à
la précision alors qu’elle n’existe pas. De ce
point de vue, la théorie des probabilités est
fondamentalement une imposture." René Thom, in
Entretien avec René Thom, Le Monde, 22-23
janvier 1995.


Sumário ¾

1 - Introdução
2 - A teoria estocástica
2.1 - Considerações preliminares
2.2 - A construção da teoria
3 - Rudimentos da teoria estocástica
4 - Escritos referidos
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1 - Introdução

“Longe de ser uma necessidade lógica, a geometria
euclidiana é um fato observacional empírico
que se aplica de modo muito preciso ¾ embora
não totalmente preciso ¾ à estrutura de nosso
espaço físico.” (PENROSE 1991:175)
“Les mathématiques naquirent lorsque les besoins
de la vie matérielle nécessitèrent leur existence,
lorsque la technique d’une société atteignit
un certain niveau. Au début elles n’eurent qu’un
caractère empirique, préscientifique. Puis elles
s’élevèrent au niveau expérimental, au niveau
d’une véritable science physique, d’une physique
du nombre et des formes.” (CHAPELON 1962:512)


É usual aproximar-se a matemática da lógica, opondo-a às
ciências empíricas. Não seria difícil rastrear essa perspectiva até
Platão e conduzi-la por um percurso quase ininterrupto, que passa
por Immanuel Kant, a Bertrand Russell e Gottlob Frege, no início do
século XX. Mas não é esse o escopo do presente escrito.
O presente autor advoga que a matemática tem raízes empíricas
e que sua separação da física foi condicionada socialmente.
Tampouco discutir essa tese é o escopo do presente escrito mas, para
que esse asserto não pareça gratuito, remeterei o leitor aos autores
seguintes, que professam opinião semelhante.

Heródoto de Halicarnasso vincula a origem do conhecimento
geométrico às exigências da agrimensura, pois as inundações periódicas
do rio Nilo teriam obrigado os arpedonaptas a retraçar os limites
dos lotes agrícolas, medida essa indispensável à cobrança dos
tributos devidos ao faraó. Notemos que o vocábulo grego geometria
corresponde etimologicamente ao nosso agrimensura (ALEXANDRE 1901:
222, 307; BAILLY 1950:274, 400; COOLIDGE 1940:25). Alguns autores indicam
a estrutura social da antiga Hélade como o principal motivo
de se haverem convertido em uma disciplina altamente racional as
técnicas geométricas empíricas usadas no antigo Egito, patentes na
edificação das portentosas pirâmides:

“La structure de la société grecque est la base matérielle du goût
des Grecs pour l’abstraction, pour la ratiocination. Il est juste de
dire qu’elle fut aussi la base de leur rationalisme, de leur confiance
dans la puissance du raisonnement pur pour atteindre la vérité, de
leur admirable technique de la démonstration, et ce dernier point devait
être d’une importance fondamentale pour le développement ultérieur
des mathématiques.” (CHAPELON 1962:514)


MEHRTENS (1976:314-315) informa como o advento de um novo modelo
de universidade provocou na Alemanha a separação entre as denominadas
ciências puras e ciências aplicadas:

“By the beginning of the nineteenth century, a new social class
had become dominant. In consequence of this change, the system of
education was modified and strengthened. The French revolution led to
the establishment of the École Polytechnique and the École Normale
which were of enormous significance in the history of mathematics.
France was the center of mathematics and science at the turn of the
century, it was the model for scholars in other countries. The German
university reform, starting with the foundation of the university of
Berlin (1809), merged traces of the French model with specifically
German philosophical ideas and, most important, was an attempt to
establish the autonomy of scholars without violating the boundaries
set by the political state of the German countries. The scientists
did not take part in the reform; still it turned out to be very favourable
to the development of mathematics and natural sciences. The
main point is that the teaching was done to students who could stay
at the university to become professors of mathematics. The institutional
background was provided by the Institute and Seminare that
were founded during the century. Thus the mathematicians could teach
the mathematics they were themselves working on.
These developments influenced the relation of pure and applied
mathematics in many ways. First, the connection of mathematics to
technology was cut off by the separation of Technische Hochschulen
and universities. Thus, for instance, descriptive geometry disappeared
from the university curriculum. Secondly, the model of the
foundation of Seminare was the mathematisch-physikalisches Seminar of
Königsberg; its fourth follower, the important Seminar of Berlin, was
already purely mathematical. The institutional structure tended to
separate fields, and thus pure mathematics was favoured. Thirdly, the
teaching of students as potential mathematicians had two effects: On
one hand, the mathematicians could teach things they were interested
in, and the teaching got swiftly up to the level of actual research,
thus forming a strong tradition. On the other hand, the mathematicians
turned their professional interest to the things they were
teaching, and thus became more concerned about the elementary partes
of their discipline.”

A despeito da propalada separação epistêmica ou metodológica
entre a matemática e a física, o exame da história revela diversos
pesquisadores como Isaac Newton (1643-1727), Leonhard Euler (1707-
1783), Joseph-Louis Lagrange (1736-1813), Pierre-Simon Laplace
(1749-1827), Carl Gauss (1777-1855), William Hamilton (1805-1865),
Henri Poincaré (1854-1912), David Hilbert (1862-1943), Hermann Weyl
(1885-1955) e Roger Penrose (1931 - ), para citar apenas os mais
conhecidos, que ignoraram a distinção epistêmica apontada pelos filósofos
das ciências e que deixaram decisiva contribuição tanto à
matemática quanto à física.
Aliás, deve consignar-se, en passant, que também são empíricas
as raízes da lógica, a qual foi criada na Academia platônica,
com apoio na observação dos métodos usados pelos geômetras que a
freqüentavam.

O escopo do presente escrito é apresentar um esboço didático
de introdução à teoria estocástica, o qual se preste a exibir como
se constrói uma disciplina matemática, desde o exame de fatos empíricos
até a sua consolidação sob a forma axiomática, evidenciando
que a axiomatização constitui o fim de um trajeto e jamais o seu
início. Esse tema será discutido no item 2.2 (a construção da teoria).
A escolha da estocástica foi ditada pelas razões seguintes:
(a) Trata-se de uma teoria cujas raízes empíricas estão suficientemente
documentadas, ao contrário da geometria e da aritmética,
cujas origens se escondem nas brumas do passado. Quem quiser investigar
as origens empíricas, por exemplo, do cálculo com frações
não deverá furtar-se a estudar cuidadosamente a obra coletiva
Histoire de fractions, fractions d’histoire, de Paul BENOIT,
Karine CHEMLA e Jim RITTER (1992), que contém cerca de duas dezenas
de estudos sobre frações, mostrando, entre outras coisas, como a
técnica fora praticada no antigo Egito e na China.

(b) Os primeiros capítulos da estocástica são tão elementares, que
podem ser expostos no curso secundário.

(c) Embora as técnicas necessárias à elaboração dos rudimentos da
estocástica já fossem anteriormente conhecidas, ela somente foi
constituída, quando o contexto cultural o impôs. Esse tema será
retomado no item 2.2 (a construção da teoria). Constitui, portanto,
um exemplo claro de que a matemática, por se produzir no seio
da sociedade humana, não está imune aos condicionamentos culturais.

(d) Tão logo a estocástica adquiriu uma formulação consistente,
foi requerida por outras ciências empíricas, sequiosas de ferramentas
adequadas para investigação de seus respectivos campos e
para a expressão de muitos de seus resultados. Desse modo, a estocástica
tornou-se relevante tanto à tomada de decisões quanto a
estudos epistêmicos. Esse tema, que é afim ao modelamento de uma
teoria empírica, será comentado no item 2.2 (a construção da teoria).
No item 3 será apresentada a proposta de iniciação à teoria
estocástica, que pode ser usada, como leitura introdutiva, no ensino
secundário. Na sua redação, o presente autor obedeceu fielmente
ao princípio didático de que o aprendizado por cada sujeito deve
reproduzir, em linhas gerais, o aprendizado pela espécie humana
(análogo ao aforismo de que a ontogênese replica a filogênese).
Assim, a construção da teoria apoiar-se-á em exemplos, dos quais se
extrairão as propriedades consideradas fundamentais.
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2 - A teoria estocástica
2.1 - Considerações preliminares
"Qualquer gênero da Matemática que se vai afastando
de sua fonte empírica ou que, em uma segunda
ou uma terceira geração, esteja apenas indiretamente
inspirada por idéias provenientes da
realidade, confronta-se com perigos muito
graves. Torna-se cada vez mais puramente estetizante,
cada vez mais puramente l'art pout l'art.

Isto não será necessariamente mau, se o gênero
vertente estiver cercado por assuntos correlatos
que ainda mantenham estreitas relações empíricas
ou se tal ramo se encontrar sob a influência de
pessoas dotadas de percepção extremamente bem
desenvolvida. Existe, contudo, o perigo de que a
matéria se desenvolva segundo a linha de menor
resistência, que seja arrastada para longe de
sua fonte e que se fragmente em um uma diversidade
de espécies insignificantes, transformando
o gênero em uma massa desarticulada de minúcias
e complexidades. Em outras palavras, a uma
grande distância de sua fonte empírica ou após
uma elaboração abstrata interna, um gênero
matemático corre o perigo de degenerescência.
Usualmente, no início, o estilo é clássico; o
sinal indicativo de perigo são os indícios de
que o estilo se está tornando barroco. Em
qualquer circunstância, sempre que essa fase é
alcançada, o único remédio que julgo eficaz é o
retorno rejuvenescedor às fontes, é a reinjeção
de idéias empíricas. Estou convencido de que
essa é uma condição necessária a que o gênero
conserve o frescor e a vitalidade. E creio que
isso é válido, não apenas agora, mas também no
futuro." (NEUMANN, J. von. The mathematician. In:
NEWMAN, J. R. (1956) The world of mathematics.
New York, Simon and Schuster. [Apud MAIA, L. P.
Mequita (1977). Mecânica Clássica, volume 2,
1977]

Há poucas décadas, designaram-se conjuntamente estocástica
(subentendendo-se teoria) a antiga teoria das probabilidades (que,
nos países de expressão alemã, era nominada cálculo da verissimilitude:
Wahrscheinlichkeitsrechnung) e os aspectos matemáticos da estatística.

O termo estocástica fora usado na Antiguidade, na acepção de
arte da conjectura. O termo stokhastikós encontra-se, por exemplo,
no diálogo platônico Philebos, para denotar a capacidade de conjecturar.
O vocábulo reapareceu no título da obra póstuma (1713) de
Jakob Bernoulli, Ars conjectandi sive stochastice, na qual o autor
pretendeu medir, com a possível precisão, a verissimilitude das
coisas. Foi reintroduzido na linguagem erudita, em 1917, por Ladislaus
von Bortkiewicz.

Como data de nascimento da estocástica aceita-se, geralmente,
o ano de 1654, no qual Blaise Pascal e Pierre de Fermat, através
de cartas, trataram de problemas associados a jogos de azar.
Mas não foi essa a primeira vez que se discutiram problemas dessa
natureza. Já em 1494, foi impresso um compêndio sobre a arte de
calcular, Summa de arithmetica ..., da autoria de Luca Pacioli.
Nesse manual, o autor afirmava que, se fossem necessários seis pontos
para se ganhar um jogo e dois jogadores interrompessem uma partida,
quando um deles tivesse cinco pontos e o outro tivesse dois
pontos, a quantia apostada deveria ser repartida entre os jogadores
na proporção de 5 para 2 (DAVIS & HERSH 1988:25; GARDING 1997: 268-
269)

Talvez logo os primeiros investigadores tenham percebido que
essa assertiva não seria aceitável. De fato, se fossem necessários
nove pontos para se ganhar um outro jogo e os jogadores interrompessem
uma partida nas condições referidas, o princípio adotado por
Luca Pacioli forneceria a mesma resposta, contrariando nossa percepção
de que a situação mudou. A primeira solução convincente foi
conhecida, depois que o Cavaleiro de Méré propôs esse problema a
Pascal. Pascal lhe respondeu que cada jogador deveria receber uma
parcela proporcional a oportunidade que ele tivesse de ganhar a
partida, no instante em que ela fosse interrompida. Para que esse
princípio fosse eficaz, seriam necessárias ferramentas que permitissem
o cálculo de tal oportunidade. Foi sobre isso que Pascal e
Fermat se cartearam e dessa discussão epistolar nasceram os fundamentos
da estocástica, expostos por Christian Huygens, em 1657, na
obra intitulada De ratiociniis in ludo aleae. Segundo a descrição
de Poisson: “Un problème relatif aux jeux de hasard, proposé à un
austère janséniste par un homme du monde, a été l’origine du calcul
des probabilités.” (EVES 1997: 365-366; GARDING 1997: 269; STEWART
1991: 52; STRUIK 1987: 103.)

Mas o interesse da humanidade pelos fenômenos fortuitos certamente
não é tão recente. Por se haverem encontrado dados de forma
quase cúbica em túmulos no antigo Egito e na Caldéia, se supõe que
o jogo de azar já fosse praticado por povos antigos (PICHARD 2005:
14-15). Tais dados foram, às mais das vezes, fabricados com astrágalos,
ossos do tarso, de forma quase cúbica, o que nos leva a conjecturar
que o curso da evolução do esqueleto dos primates foi determinante
na escolha do poliedro que seria usado nos jogos de
azar.

Os hebreus recorriam à sorte, para decidirem acerca da divisão
de um terreno, para atribuírem funções e para buscarem culpados
(Van den BORN 1971:1459). Informa também esse autor (1971:1079) que
“acontecimentos imprevistos eram interpretados como indícios da
vontade divina”, porque se acreditava que tudo o que ocorre é assim
determinado por Javé. Talvez seja essa a origem do ordálio, método
usado na Idade Média para instruir a sentença judicial, segundo o
qual um acusado era submetido a condições dolorosas ou perigosas,
sendo o resultado considerado como julgamento divino.

Também na mítica grega, há referências às decisões pela sorte.
Por exemplo, os três filhos de Hércules, após haverem conquistado
a península do Peloponeso, dividiram-na em três partes e as
sortearam. Em oposição ao fortuito, o espírito grego reconheceu a
necessidade, que foi personificada em Ananque [,Anaggh] a qual, na
teogonia órfica era irmã da justiça, Dique [Dikh]. No mito platônico
A república, Ananque é a mãe das Moiras, que representam o destino
pessoal de cada ser humano. (Cf. GRIMAL 1951:102b, 300b, 310b-311a.)
COURTEBRAS (2005:209) distingue, no pensamento grego, duas
modalidades de destino, que são incompatíveis com a noção de casualidade:
o destino segundo os escritores trágicos e o destino segundo
os estóicos.

O paradigma do destino trágico encontra-se na trilogia “o
rei Édipo, Édipo em Colono e Antígone”, de Sófocles. Nessa narrativa,
a casualidade não desempenha papel algum mas o destino é inexorável,
sendo diante dele impotentes os próprios deuses olímpicos.

Por outro lado, entre os estóicos, embora inelutável, o princípio
que distribui o destino a cada um é a razão universal, o logos, que
não atua casualmente mas segundo uma diretriz. (COURTEBRAS 2005:110).
Na sua Física (II 4,5 6), Aristóteles distinguiu entre os
eventos contingentes, que se produzem necessariamente, e os eventos
fortuitos, de ocorrência incerta (PICHARD 2005:13-14).

Parece que em Roma se praticavam tão obcecadamente os jogos
de azar, que foram editadas leis contra as casas de jogos. PICHARD
(ibidem) refere que se encontraram dados viciados, o que nos leva a
supor que já houvesse o reconhecimento claro de que, em condições
de perfeita simetria, todas as faces de um dado propendem a ocorrer
com iguais freqüências.

A incipiente igreja cristã foi herdeira da concepção de providência
divina, que já se esboçava na cultura hebraica. Segundo
esse conceito, Deus governa toda a natureza e cuida de suas criaturas.
Por considerar a providência divina como a manifestação contínua
do amor e da vontade divinas (van den BORN 1971:1236), essa concepção
pode haver sido um dos motivos que levaram a igreja cristã,
desde os seus primórdios, a condenar os jogos de azar (PICHARD 2005:
15) e, conseqüentemente, a postergar o nascimento da estocástica.
Os primeiros escritos sobre a teoria estocástica, dos quais
temos notícia, remontam ao século XVII mas apenas foram publicados
no século seguinte. Trata-se das obras de Giròlamo [Hyeronimus]
Cardano e de Galileo Galilei. Cardano, em seu Liber de Ludo Aleae
(escrito antes de 1576 e publicado em 1663), que consiste em trinta
e dois breves capítulos, estuda especificamente os jogos de dados e
os jogos de cartas.

Talvez se possa concluir que, antes de a estocástica haver
sido constituída, já os jogadores houvessem acumulado um acervo
significativo de resultados experimentais. Assim, os objetivos precípuos
dessa teoria seriam explicar os fatos já conhecidos e prever
novos resultados. Os fatos conhecidos podem haver sido consignados
em termos de freqüências relativas, o que permitiria aos jogadores
orientar-se na proposição de apostas.

De fato, entre os problemas resolvidos por Cardano (e, posteriormente,
também por Galilei) figura o seguinte: “Três dados são
jogados simultaneamente e os resultados obtidos em cada um deles
são somados. O número de partições de nove em três parcelas é igual
ao número de partições de dez em três parcelas. Mas, experimentalmente,
a freqüência relativa de ocorrência de nove é menor que a
freqüência relativa de ocorrência de dez.” (Cf. FERNANDEZ 1973:30, n.
15.)

Concluiremos a presente seção, transcrevendo um excerto de
PICHARD (2005:14-15):

“On peut alors se poser deux questions: pourquoi la théorie des
probabilités a-t-elle porté d’abord sur les jeux de pur hasard (lancers
de pièces, de dés...) et non sur d’autres phénomènes aléatoires
de la vie économique par exemple, et pourquoi cela est-il survenu si
tardivement ? En effet, les outils mathématiques utilisés par les
inventeurs de cette théorie sont très simples et étaient connus dès
l’antiquité grecque pour l’arithmétique et le calcul des proportions
et le Moyen-Age pour les combinaisons; ainsi, dès cette époque, l’appareillage
mathématique pour une telle théorie était disponible.

Sur le premier point, on peut remarquer que les jeux de hasard
pur (où l’adresse des joueurs n’intervient pas) sont les plus simples
conceptuellement et qu’ils sont faciles à modéliser; Pascal a écrit à
ce propos que cette théorie pourrait “s’arroger à bon droit ce titre
étonnant: Géométrie du hasard” dans son Adresse de 1654 à l’Académie
Parisienne Le Pailleur (qui faisait suite à l’académie de Mersenne).
Ce sont des problèmes de ce genre qui ont été développés en premier,
à l’encontre de l’hypothèse de Maistrov qu’une science se développe
pour répondre à des besoins économiques.

Sur le second point, une première raison est qu’un traité scientifique
sur les jeux de hasard ne fait peut-être pas très sérieux, le
jeu étant chose futile aux yeux des savants. Une autre raison, certainement
plus importante, est que le résultat d’un tirage au «sort»
est l’expression de la volonté divine et, comme telle, on ne doit pas
calculer dessus, on ne doit pas tenter Dieu (ou le Diable); cette attitude
existe encore actuellement avec les attitudes superstitieuses
de joueurs. C’est peut-être une raison pour laquelle l’Eglise catholique
avait prohibé les jeux de hasard.”

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2.2 - A construção da teoria

“Um ramo do saber será vigoroso, enquanto oferecer
problemas em abundância; a falta de problemas
significa marcescência ou fim da evolução
autônoma. A pesquisa matemática precisa de problemas,
assim como todo empreendimento humano
persegue metas. É mediante a resolução de problemas
que o pesquisador tempera a sua força;
ele encontra novos métodos e perspectivas e alcança
um horizonte mais amplo e mais livre.”
David HILBERT (1900). Mathematische Probleme.
(Conferência proferida no Congresso Internacional
de Matemáticos, em Paris, aos 8 de agosto de
1900.)

O primeiro tratado sobre a nova disciplina, escrito por
Christian Huygens, foi publicado em 1657, sob o título De ratiociniis
in ludo aleae. Huygens inicia com a tentativa de formalizar a
noção de direito de esperar, a qual encontrou em Pascal, sob o nome
de ‘valeur de la chance’: “Quoique dans les jeux de hasard pur les
résultats soient incertains, la chance qu’un joueur a de gagner ou
de perdre a cependant une valeur déterminée.” Esse tratado permaneceu
a única obra importante em estocástica até o início do século
XVIII, talvez porque, naquela época, os matemáticos estivessem ocupados
em elaborar o cálculo infinitesimal, inventado por Leibniz, e
o método equivalente das fluxões e das fluentes, inventado por Newton;
talvez, também, por se julgar, então, que a estocástica não se
pudesse empregar nas ciências (cf. PICHARD 2005:24).
Cabe assinalar que nem Fermat, nem Pascal, nem Huygens trataram
da noção de probabilidade mas de oportunidades ou ‘chances’.

O termo francês chance proveio do latim vulgar [não comprovado] cadentia,
do qual proveio o português cadência e corresponde, no
latim clássico, a alea, casus ou fortuna. O termo probabilidade
pertence à família do vocábulo latino probus, do qual derivam as
palavras portuguesas probo, ímprobo e provar. Foi introduzido na
jurisprudência, na Idade Média, no contexto do exame de provas,
indícios materiais e testemunhos, pois, consoante a notoriedade ou
a autoridade moral da testemunha, o testemunho apresentaria menor
ou maior peso. Nesse contexto, a probabilidade correspondia ao grau
de credibilidade atribuída a uma opinião ou ao julgamento de um fato.
Seria provável uma opinião atestada por todas as autoridades
morais ou religiosas; por extensão, por numerosas autoridades; por
deslizamento, por uma única autoridade. Daí a doutrina do probabilismo,
que considera impossível atingir-se a certeza e recomenda
satisfazer-se com o que for mais provável.

Karl Popper supôs que o termo probabilis tenha sido inventado
pelo romano M. T. Cícero, para traduzir diversos termos usados
pelos estóicos e pelos cépticos, tais quais piqanos, piqane e pistin, e
cita o seguinte excerto ciceroniano: “Essas são as coisas que creio
dever qualificar como prováveis [probabile] ou semelhantes à verdade
[veri simile].” (POPPER 1994:440)

O termo probabilidade, na acepção que hoje lhe atribuímos,
foi introduzido, pela primeira vez, na Arte de Pensar, redigida por
Arnauld & Nicole e denominada Logique de Port-Royal. Essa arte de
pensar foi estruturada segundo os quatro aspectos do pensamento racional:
compreender, julgar, deduzir e ordenar. Essa obra, que seria
usada como manual durante todo o século XVIII, institui a caracterização
(interna e externa) e as propriedades lógicas das proposições
certas ou impossíveis. Em seguida, os autores tratam das
proposições incertas, especificamente dos testemunhos sobre eventos
da vida comum ou extraordinários. A essas proposições incertas é
atribuída uma probabilidade, o seu grau de credibilidade. (Cf. PICHARD
2005:24-26)

Mas, mesmo nesse texto, ainda se encontra a oposição entre a
concepção medieval e a concepção de proporção:

“[...] a fim de decidirmos o que devemos fazer para obtermos algum
bem ou evitarmos algum mal, é necessário considerar não apenas o bem
ou o mal em si mesmos mas também a probabilidade de que ele ocorra e
enxergar geometricamente a proporção de todas essas coisas tomadas
conjuntamente”. (Apud EAGLE 2004:371)
Considera-se que Huygens foi o primeiro a examinar a aplicação
do cálculo estocástico a outros domínios que os dos jogos de
azar. Estudou a esperança da vida humana, apoiado em dados recolhidos
em Londres, em conexão com os problemas das rendas e das anuidades.
(LANIER 1995:261)

Na já citada Ars conjectandi, publicada em 1713, Jakob Bernoulli
operou um deslizamento progressivo do cálculo das expectativas
de Huygens para o cálculo das probabilidades. Terminou por definir
a probabilidade como o grau de certeza com o qual se pode
produzir um acontecimento futuro. A Ars conjectandi consiste em
quatro partes. A primeira parte é uma reprodução, anotada e comentada,
do tratado de Huygens. A segunda parte é uma compilação sistemática
de técnicas de enumeração (permutações e combinações). A
terceira parte aplica os resultados precedentes aos jogos de azar.

E a quarta parte colima a extensão da teoria a outros domínios,
tais quais os negócios civis, morais e econômicos, extensão essa
fundada no enunciado e na demonstração de um teorema que seria designado
lei dos grandes números por Denis POISSON, nas Recherches sur
la probabilité des jugements (1837).

O escopo de Bernoulli era estudar os argumentos que se podem
usar na arte de conjecturar e como lhes estimar os pesos para suputar
as probabilidades. Para isso distinguiu entre dois tipos de situações
aleatórias.

A primeira situação é a dos jogos de azar, na qual as probabilidades
são inferidas ‘a priori’ dos dados mais ou menos explícitos
da experiência aleatória. Bernoulli propôs como modelo para
descrever tal situação uma urna com bolas coloridas. Nesse caso, a
resolução do problema se reduz à aplicação das técnicas de enumeração
(compiladas na segunda parte de sua obra).

A segunda situação é a das experiência aleatórias nas quais
a probabilidade será definida ‘a posteriori’, mediante a repetição
do experimento por um número de vezes muito grande. Antes de considerar
exemplos extraídos de outros domínios, Bernoulli retomou o
modelo da urna, supondo que não se lhe conhecesse a composição.
Bernoulli supôs que, à medida que crescesse o número de experimentos,
a freqüência relativa da ocorrência de um dado evento convergiria
a sua probabilidade mas, cautelosamente, introduziu a noção
de intervalo de confiança, definido pelos valores mínimo e máximo
das freqüências relativas associadas a diversos do experimento. (LANIER
1995:262)

Foi nessa quarta parte da obra, que Bernoulli propôs a noção
de probabilidade epistemológica, que representava a elaboração de
uma teoria não aditiva e que foi absorvida pela concepção aleatória
dos jogos de azar, cuja preeminência impôs a teoria aditiva da probabilidade.
Os sucessores de Bernoulli, iniciando por MONTMORT e DE
MOIVRE, mantiveram a identificação dos conceitos de probabilidade e
de sorte, adquirindo o termo uma conotação associada aos aspectos
aleatórios dos fenômenos. O recurso a técnicas matemáticas conduziu
à quase extinção do que se nomeava probabilidade epistemológica.
(CERRO 2006:3-6)
Após MONTMORT e de MOIVRE, a teoria apresentou intensa maturação.

Paralelamente, a partir de estudos sobre hidrodinâmica conduzidos
por Daniel Bernoulli (sobrinho de Jakob), em 1738, desenvolveu-
se a teoria cinética dos gases. Clausius deu-lhe decisiva
contribuição, ao introduzir o conceito de velocidade de difusão de
um gás, que pode exprimir-se através os coeficientes macroscópicos
de difusão, iniciando uma prática que se tornou fecunda, pois grandezas
macroscópicas são diretamente observáveis. O passo seguinte
foi dado por Maxwell, que incorporou à Física diversos recursos da
teoria das probabilidades, sendo seguido nessa prática por Boltzmann
que, de 1872 em diante, empreendeu reduzir a termodinâmica à
mecânica, mediante a hipótese do caos molecular, que imprime nova
orientação ao cálculo das probabilidades (ANDRADE 2002:173-168).
Boltzmann enfrentou forte oposição por um significativo segmento
de físicos, cujo mais forte argumento consistia em notar que
as leis da mecânica são reversíveis enquanto não o são as leis da
termodinâmica, sendo essa irreversibilidade traduzida no conceito
de entropia, cujo crescimento é postulado na Segunda lei. Boltzmann
retrucou, sustentando que os processos dissipativos são irreversíveis,
por ser extremamente pequena a probabilidade de um estado
muito afastado do valor máximo.

Mas dizer que é muito pequena a probabilidade de um evento
não equivale a dizer que tal evento não ocorrerá. Esse quesito, que
já fora discutido por Antoine Cournot (1843), voltou à tona, a propósito
da aguda crítica que se fazia à formulação para termodinâmica
proposta por Boltzmann. Presentemente, denomina-se princípio de
Cournot à afirmativa de que é fisicamente impossível um evento cuja
probabilidade seja extremamente pequena. (Cf. SHAFER & VOVK 2005:11-
12.)

Considerou-se esse problema tão relevante, que foi incluído
por David Hilbert entre os problemas propostos durante o Congresso
Internacional de Matemáticos, em Paris, aos 8 de agosto de 1900,
sob a rubrica tratamento matemático dos axiomas da física [mathematische
Behandlung der Axiome der Physik]: “A investigação dos fundamentos
da geometria nos propôs insistentemente a tarefa de tratar
axiomaticamente, segundo esse modelo, aqueles ramos da física, nos
quais, hoje em dia, a matemática desempenha um papel proeminente,
entre os quais avultam o cálculo das probabilidades e a mecânica.
[Durch die Untersuchungen über die Grundlagen der Geometrie wird
uns die Aufgabe nahegelegt, nach diesem Vorbilde diejenigen physikalischen
Disziplinen axiomatisch zu behandeln, in denen schon
heute die Mathematik eine hervorragende Rolle spielt; dies sind in
erster Linie die Wahrscheinlichkeitsrechnung und die Mechanik.}
Parece significativo que Hilbert houvesse considerado o cálculo
das probabilidades como um ramo da física.

Nos primeiros decênios do século XX, foram propostas algumas
axiomatizações para a estocástica, que refletiam as visões de seus
autores. Usualmente, distinguem-se três concepções: a clássica, a
freqüencial e a subjetiva. (Cf. ZOCCANTE 2005:5)

A concepção clássica deriva do trabalho de Fermat e Pascal,
segundo a formulação de Laplace, para quem a probabilidade de um
evento era a razão entre o número de casos favoráveis e o número de
casos possíveis (pois a esses últimos se atribui a mesma probabilidade).
Nessa definição se reconhece a influência da sua origem (jogos
de dados e de cartas), nos quais, por simetria, se consideravam
todos os eventos elementares como equiprováveis.

A concepção freqüencial já se manifestou no problema enfrentado
por Cardano e Galilei: A freqüência relativa de ocorrência da
soma dez era maior que a freqüência relativa de ocorrência da soma
nove, o que parecia em desacordo com a expectativas correspondentes.

Segundo a concepção freqüencial, se a freqüência relativa de
um evento não convergir à probabilidade calculada segundo algum modelamento
do fenômeno estudado, então tal modelamento deverá ser
substituído por outro.
Na concepção subjetiva, a probabilidade é definida como o
grau de confiança que um observador tem de que tal evento ocorra.

Obviamente, esse conceito não modifica o cálculo da probabilidade
nas situações em que existe regularidade (como lançamentos de dados
ou de moedas) mas se torna mais adequado a situações, como a gestão
de empresas, nas quais as decisões pessoais são determinantes mas
não se podem reduzir ao exame de freqüências.

A primeira das axiomatizações dignas de nota foi a de Richard
von Mises (1919), às quais se seguiram diversas outras, entre
as quais a proposta por Karl Popper (1938), que sofreu várias modificações
até atingir a forma publicada em 1956. Mas a comunidade
preferiu a formulação de Andrei Kolmogorov (1933). A axiomatização
que será construída no item 3.2, apoiando-se nos exemplos concretos,
aproxima-se da proposta de Kolmogorov.

Presentemente, a estocástica é usada para o modelamento de
diversos fenômenos, tanto na física quanto na genética. Também é
usada como fundamento da teoria dos jogos. Resumidamente, a teoria
dos jogos trata das situações de conflito, isto é, das situações
nas quais diversos sujeitos perseguem objetivos distintos e nas
quais o resultado final depende de decisões tomadas por cada sujeito.

Dizemos que o jogo é competitivo, quando o bom êxito de um
sujeito implica o mau êxito dos outros. Essa teoria foi fundada por
Oskar Morgenstern e Janos von Neumann, em 1944. Posteriormente,
John Nash introduziu a teoria dos jogos competitivos, baseada no
conceito de jogos com estratégia mista que progridem ciberneticamente
em um círculo lógico em direção a um ponto de equilíbrio que
otimiza os resultado para todos os jogadores. Pelas correções e extensões
da teoria de von Neumann, Nash ganharia o prêmio Nobel de
Economia de 1994.

Se aceitarmos o juízo de que o estudo das leis naturais pode
ser visto como um jogo, no qual a natureza procura ocultar os segredos
e os investigadores tentam desvendá-lo, poderemos aplicar a
estocástica não apenas como instrumento de descrição do saber mas
como ferramenta para construí-lo (cf. HEGENBERG 1976:165).
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3 - Rudimentos da teoria estocástica

Primeiro protótipo ¾

Consideremos uma turma com a seguinte composição:
12 estudantes nascidos em Salvador (S),
6 estudantes nascidos na Feira de Santana (F),
4 estudantes nascidos na Cachoeira (C),
3 estudantes nascidos nas Barreiras (B).

Essa turma consistirá em estudantes distribuídos segundo as
proporções seguintes:

B: 3/(3 + 4 + 6 + 12) = 3/25 = 12%
C: 4/(3 + 4 + 6 + 12) = 4/25 = 16%
F: 6/(3 + 4 + 6 + 12) = 6/25 = 24%
S: 12/(3 + 4 + 6 + 12) = 12/25 = 48%.

Verifica-se facilmente que a composição dessa turma goza de
uma propriedade inerente a qualquer distribuição desse tipo, qual
seja, é igual à unidade a soma das proporções de todos os componentes
da turma.

Nesse exemplo, 3/25 + 4/25 + 6/25 + 12/25 = 1 ou, equivalentemente,
12% + 16% + 24% + 48% = 100%.
À expressão desse fato chamaremos propriedade A.

Suponhamos, em seguida, que um estudante dessa turma seja escolhido
aleatoriamente para representa-la junto à Diretoria da escola
vertente.

Para efetuar tal escolha aleatória, podemos supor que dispomos
de uma urna com vinte e cinco bolas idênticas, numeradas de 1 a 25,
e associadas aos componentes da turma, listados na ordem alfabética.
Dizer que um estudante será escolhido aleatoriamente equivale
a dizer que uma bola será retirada da urna por um processo que não
envolva volição.

Por admitirmos que a atribuição de números às bolas não lhes
modifica as propriedades físicas (tais quais o volume e o peso),
podemos dizer que a expectativa de que seja escolhida uma qualquer
dentre elas se possa medir pela proporção de 1 para 25. Equivalentemente,
dizemos que essa é a expectativa de que seja escolhido um
qualquer dentre os estudantes que integram a turma referida. O conjunto
de todas as escolhas de um estudante dessa turma será
designado pela locução espaço amostral.

A cada escolha de um estudante dessa turma chamaremos ponto do
espaço amostral. A qualquer parte do espaço amostral chamaremos
evento e diremos que um evento é elementar, se ele consistir em um
único elemento.

Nesse exemplo, notamos que todos os eventos elementares apresentam
a mesma expectativa. À propriedade de que todos os eventos
de um espaço amostral exibam a mesma expectativa chamaremos
eqüidade.
Diremos que dois eventos são incompatíveis, quando eles não
podem ocorrer concomitantemente.
Exemplo 1 ¾
Sejam E1 = {ser escolhido o primeiro estudante da lista} e E2
= {ser escolhido o segundo estudante da lista}. Se estivermos examinando
a escolha de um único estudante, os eventos E1 e E2 serão
incompatíveis.
Por outro lado, a expectativa de que ocorra a reunião dos
eventos E1 e E2 será a soma das respectivas expectativas, isto é,
p(E1 È E2) = 1/25 + 1/25 = 2/25.
Esse exemplo nos leva a formular a propriedade B: A expectativa
de que ocorra a reunião de dois eventos incompatíveis é a soma
das expectativas desses dois eventos.
Exemplo 2 ¾
Sejam EB = {ser escolhido um estudante nascido nas Barreiras},
EC = {ser escolhido um estudante nascido na Cachoeira}, EF = {ser
escolhido um estudante nascido na Feira de Santana} e ES = {ser
escolhido um estudante nascido em Salvador}. Se ainda estivermos
examinando a escolha de um estudante, os eventos EB, EC, EF e ES
serão incompatíveis.

Decorre do primeiro exemplo e da propriedade A que a expectativa
de que ocorra o evento EB é 3/25, o que será representado por
p(EB) = 3/25.
Pelos mesmos motivos, p(EC) = 4/25, p(EF) = 6/25 e p(ES) =
12/25.
O exame desse resultado nos conduz à formulação da propriedade
C: A soma das expectativas de todos os eventos incompatíveis (de um
mesmo espaço amostral) é igual à unidade.

Essa propriedade C fornece outro modo de se calcular a expectativa
do complementar de um evento H. De fato, seja H o evento
{ser escolhido um estudante que nasceu nas Barreiras, na Cachoeira
ou na Feira de Santana}. Ora, podemos calcular p(H) como 3/25 +
4/25 + 6/25 = 13/25. Por outro lado, notando que H = {ser escolhido
um estudante que não nasceu em Salvador} = CES, podemos escrever que
p(H) = p(CES)= 1 – p(ES) = 1 – 12/25 = 13/25.

Problema 1 ¾

Dada uma urna que contém duas bolas verdes, três bolas brancas
e quatro bolas azuis, sejam os eventos EV = {ser extraída uma bola
verde}, EB = {ser extraída uma bola branca} e EA = {ser extraída uma
bola azul}. Calcule as expectativas p(EA), p(EB), p(EV) e calcule,
por dois procedimentos, p(EA È EB).

Segundo protótipo ¾

Na discussão do exemplo anterior, verificamos que a expectativa
da reunião de eventos incompatíveis é a soma das expectativas
dos eventos considerados (propriedade B). Essa propriedade suscita
outro quesito: Como se deve calcular a expectativa da interseção de
dois eventos? O exame da seguinte situação fornecerá uma resposta
clara.

Consideremos duas urnas, das quais a primeira contém uma bola
branca e duas bolas verdes e a segunda contém três bolas azuis e
cinco bolas purpurinas, e efetuemos a extração de duas bolas, uma
da primeira urna e outra da segunda urna.
Para descrever o espaço amostral correspondente a esse experimento,
recorreremos ao conceito de produto cartesiano S x T de dois
conjuntos S e T. Lembramos que tal conjunto consiste nos pares formados
por um elemento do primeiro conjunto (S) e por um elemento do
segundo conjunto (T). O exame desse produto cartesiano é conduzido
facilmente mediante a tabela seguinte, na qual os eventos elementares
serão descritos pelas iniciais das cores das bolas extraídas.
Poderemos supor que a extração se fará sucessivamente e que a primeira
letra indica o evento correspondente à primeira urna, enquanto
a segunda letra representa o evento correspondente à segunda urna.
A P
B BA BP
V VA VP
A fim de, coerentemente com os resultados já obtidos,
atribuirmos expectativas aos eventos elementares que compõem esse
espaço amostral, notemos que, na primeira urna, vigoram as
expectativas:
p(B) = 1/3 e p(V) = 2/3;
enquanto, na segunda urna, p(A) = 3/8 e p(P) = 5/8.
Ora, de acordo com a propriedade C, como são incompatíveis os
eventos elementares do novo espaço amostral, será igual a 1 a soma
das respectivas expectativas.
Mas 1 = 1 x 1 = (1/3 + 2/3).(3/8 + 5/8) =
(1/3).(3/8) + (1/3).(5/8) + (2/3).(3/8) + (2/3).(5/8).
Isso nos conduz a atribuirmos aos eventos elementares as expectativas
seguintes, em harmonia com a propriedade C:
p(BA) = (1/3).(3/8) = 3/24
p(BP) = (1/3).(5/8) = 5/24
p(VA) = (2/3).(3/8) = 6/24
p(VP) = (2/3).(5/8) = 10/24.

Assim, obtivemos uma nova propriedade, a que chamaremos propriedade
D: A expectativa de dois eventos sucessivos é o produto
das respectivas expectativas.
Esse princípio tanto nos permite estudar a composição de experimentos
distintos (como a extração de bolas de urnas distintas)
quanto experimentos que consistem na repetição de um mesmo
experimento.

Exemplo 3 ¾

Com os dados do problema 1 enunciaremos um novo problema ou,
equivalentemente, definiremos um outro espaço amostral, para descrevermos
o experimento de se extraírem, sucessivamente, duas bolas
da urna considerada. Para identificarmos esse espaço amostral, usaremos
novamente o produto cartesiano do espaço amostral do problema
1 por si mesmo, construindo a tabela seguinte:
A B V
A AA AB AV
B BA BB BV
V VA VB VV

Notemos que, no cálculo das expectativas associadas aos eventos
elementares, consideraremos as mudanças introduzidas na
composição da urna pela extração da primeira bola. De fato, a urna
consiste, inicialmente, em nove bolas. Mas a extração de uma bola
reduz o número total das bolas bem como o número de bolas que têm a
mesma cor que a bola extraída. Baseados nesse fato, podemos
atribuir as seguintes expectativas aos eventos elementares do
espaço amostral descrito:
p(AA) = (4/9).(3/8) = 12/72
p(AB) = (4/9).(3/8) = 12/72
p(AV) = (4/9).(2/8) = 8/72
p(BA) = (3/9).(4/8) = 12/72
p(BB) = (3/9).(2/8) = 6/72
p(BV) = (3/9).(2/8) = 6/72
p(VA) = (2/9).(4/8) = 8/72
p(VB) = (2/9).(3/8) = 6/72
p(VV) = (2/9).(1/8) = 2/72
(Observemos que a soma das expectativas a todos os eventos
elementares é igual à unidade.)

Elaborada essa tabela, que descreve exaustivamente o espaço
amostral considerado, poderemos responder a quaisquer perguntas a
respeito dele. Por exemplo:
• A expectativa de que sejam extraídas duas bolas com a mesma cor:
12/72 + 6/72 + 2/72 = 20/72. Logo, é maior que a expectativa de
que a primeira bola seja verde mas é menor que a expectativa de
que a primeira bola seja branca.
• A expectativa de que sejam extraídas duas bolas com cores
distintas: 12/72 + 8/72 + 12/72 + 6/72 + 8/72 + 6/72 = 52/72 ou,
mais facilmente, 1 – 20/72 = 52/72.
• A expectativa de que exatamente uma bola seja verde: 8/72 + 6/72
+ 8/72 + 6/72 = 28/72.
• A expectativa de que pelo menos uma das bolas seja verde: 28/72 +
2/72 = 30/72.
• A expectativa de que nenhuma das bolas seja verde: 1 – 30/72 =
42/72.
• A expectativa de que a segunda bola seja azul: 12/72 + 12/72 +
8/72 = 32/72 = 4/9 (resultado que pode causar surpresa, por
coincidir com a expectativa de que a primeira bola seja azul).

Problema 2 ¾

Com os dados relativos à turma considerada no primeiro protótipo,
suponha que serão escolhidos, sucessiva e aleatoriamente,
dois estudantes para representá-la junto à Diretoria da escola e
calcule as expectativas dos seguintes eventos:

• Os estudantes escolhidos haverem nascido na mesma cidade.
• Os estudantes escolhidos haverem nascido em cidades distintas.
• Exatamente um estudante haver nascido em Salvador.
• Exatamente um estudante não haver nascido em Salvador.
• O segundo estudante haver nascido em Salvador.

Terceiro protótipo ¾
Ainda com os dados do problema 1 enunciaremos um terceiro
problema ou, equivalentemente, definiremos um terceiro espaço
amostral, para descrever o experimento de se extraírem, sucessivamente,
três bolas da urna considerada. Para identificarmos esse
espaço amostral, recorreremos novamente ao conceito de produto
cartesiano, neste caso, do espaço amostral do segundo protótipo
pelo espaço amostral do problema 1.

A B V
AA AAA AAB AAV
AB ABA ABB ABV
AV AVA AVB AVV
BA BAA BAB BAV
BB BBA BBB BBV
BV BVA BVB BVV
VA VAA VAB VAV
VB VBA VBB VBV
VV VVA VVB VVV

Notando agora que também a extração da segunda bola produz
mudanças na composição da urna, podemos atribuir as seguintes expectativas
aos eventos elementares do espaço amostral descrito:

p(AAA) = (4/9).(3/8).(2/7) = 24/504
p(AAB) = (4/9).(3/8).(3/7) = 36/504
p(AAV) = (4/9).(3/8).(2/7) = 24/504
p(ABA) = (4/9).(3/8).(3/7) = 36/504
p(ABB) = (4/9).(3/8).(2/7) = 24/504
p(ABV) = (4/9).(3/8).(2/7) = 24/504
p(AVA) = (4/9).(2/8).(3/7) = 24/504
p(AVB) = (4/9).(2/8).(3/7) = 24/504
p(AVV) = (4/9).(2/8).(1/7) = 8/504
p(BAA) = (3/9).(4/8).(3/7) = 36/504
p(BAB) = (3/9).(4/8).(2/7) = 24/504
p(BAV) = (3/9).(4/8).(2/7) = 24/504
p(BBA) = (3/9).(2/8).(4/7) = 24/504
p(BBB) = (3/9).(2/8).(1/7) = 6/504
p(BBV) = (3/9).(2/8).(2/7) = 12/504
p(BVA) = (3/9).(2/8).(4/7) = 24/504
p(BVB) = (3/9).(2/8).(2/7) = 12/504
p(BVV) = (3/9).(2/8).(1/7) = 6/504
p(VAA) = (2/9).(4/8).(3/7) = 24/504
p(VAB) = (2/9).(4/8).(3/7) = 24/504
p(VAV) = (2/9).(4/8).(1/7) = 8/504
p(VBA) = (2/9).(3/8).(4/7) = 24/504
p(VBB) = (2/9).(3/8).(2/7) = 12/504
p(VBV) = (2/9).(3/8).(1/7) = 6/504
p(VVA) = (2/9).(1/8).(4/7) = 8/504
p(VVB) = (2/9).(1/8).(3/7) = 6/504
p(VVV) = (2/9).(1/8).(0/7) = 0/504 = 0

Descrito esse espaço amostral, poderemos responder a qualquer pergunta
a respeito dele. Por exemplo, a expectativa de que sejam extraídas:

• Bolas da mesma cor: 24/504 + 6/504 + 0 = 30/504 = 5/84
• Uma bola de cada cor: 24/504 + 24/504 + 24/504 + 24/504 + 24/504
+ 24/504 = 144/504 = 24/84
• Exatamente duas bolas com a mesma cor: 1 - (5/84 + 24/84) = 55/84

Comentário 1 ¾
O método que adotamos para descrever cada espaço amostral e
calcular as expectativas dos respectivos eventos elementares mostrou-
se eficiente porém extremamente incômodo. Para nos convencermos
disso, será suficiente notar que, se quiséssemos estudar quatro
extrações feitas na urna considerada, teríamos que considerar oitenta
e um (= 34) eventos elementares.

Um método alternativo depende do uso de técnicas de enumeração
mais poderosas. De fato, examinando a tabela anterior, distinguiremos
três categorias de eventos elementares: (a) Eventos nos quais
as três bolas extraídas apresentam a mesma cor. (b) Eventos nos
quais são extraídas exatamente duas bolas de uma mesma cor. (c)
Eventos nos quais as três bolas extraídas apresentam cores distintas.

Examinemos detidamente cada categoria.

(a) p(AAA) = (4/9).(3/8).(2/7) = 24/504
p(BBB) = (3/9).(2/8).(1/7) = 6/504
p(VVV) = (2/9).(1/8).(0/7) = 0

Portanto, a expectative de que sejam extraídas bolas da mesma
cor é (24/504) + (6/504) = 30/504 = 5/84.

(b) Evento AAB ¾ Apresenta três permutações: AAB, ABA, BAA. Logo,
p{AAB, ABA, BAA} = 3.(4/9).(3/8).(3/7) = 108/504
Evento AAV ¾ Apresenta três permutações: AAV, AVA, VAA. Logo,
p{AAV, AVA, VAA} = 3.(4/9).(3/8).(2/7) = 72/504
Evento BBV ¾ Apresenta três permutações: BBV, BVB, VBB. Logo,
p{BBV, BVB, VBB} = 3.(3/9).(2/8).(2/7) = 36/504
Evento BBA ¾ Apresenta três permutações: BBA, BAB, ABB. Logo,
p{BBA, BAB, ABB} = 3.(3/9).(2/8).(4/7) = 72/504
Evento VVA ¾ Apresenta três permutações: VVA, VAV, AVV. Logo,
p{VVA, VAV, AVV} = 3.(2/9).(1/8).(4/7) = 24/504
Evento VVB ¾ Apresenta três permutações: VVB, VBV, BVV. Logo,
p{VVB, VBV, BVV} = 3.(2/9).(1/8).(3/7) = 18/504
Portanto, a expectativa de que sejam extraídas exatamente duas
bolas de uma mesma cor é 108/504 + 72/504 + 36/504 + 72/504 +
24/504 + 18/504 = 330/504 = 55/84.
(c) Evento ABV ¾ Apresenta seis permutações. Logo,
p{ABV, BVA, VAB, AVB, VBA, BAV} = 6.(4/9).(3/8).(2/7) = 144/504

Portanto, a expectativa de que as três bolas tenham cores distintas
é 144/504 = 24/84.
Podemos conferir a coerência do cálculo, notando que 5/84 + 55/84 +
24/84 = 1.
Exemplo 4 ¾

Efetuemos a descrição do experimento de se extraírem, sucessivamente,
quatro bolas daquela mesma urna, que contém duas bolas
verdes, três bolas brancas e quatro bolas azuis. Consideraremos as
seguintes categorias de eventos elementares nesse novo espaço amostral:

Quatro bolas da mesma cor:

• p(AAAA) = (4/9).(3/8).(2/7).(1/6) = 24/3024
• p(BBBB) = (3/9).(2/8).(1/7).0 = 0
• p(VVVV) = (2/9).(1/8).0.0 = 0

Exatamente três bolas de uma mesma cor:

• AAAB ® Admite quatro permutações.
p{BAAA, ABAA, AABA, AAAB} = 4.(4/9).(3/8).(2/7).(3/6) = 288/3024
• AAAV ® Admite quatro permutações.
p{VAAA, AVAA, AAVA, AAAV} = 4.(4/9).(3/8).(2/7).(2/6) = 192/3024
• BBBA ® Admite quatro permutações.
p{ABBB, BABB, BBAB, BBBA} = 4.(3/9).(2/8).(1/7).(4/6) = 96/3024
• BBBV ® Admite quatro permutações.
p{VBBB, BVBB, BBVB, BBBV} = 4.(3/9).(2/8).(1/7).(2/6) = 48/3024
• VVVA ® Admite quatro permutações, todas com expectativa nula.
• VVVB ® Admite quatro permutações, todas com expectativa nula.

Duas bolas de uma cor e duas bolas de outra cor:

• AABB ® Admite seis permutações.
p{AABB, ABAB, BAAB, BABA, BBAA, ABBA} =
6.(4/9).(3/8).(3/7).(2/6) = 432/3024.
• AAVV ® Admite seis permutações.
p{AAVV, AVAV, VAAV, VAVA, VVAA, AVVA} =
6.(4/9).(3/8).(2/7).(1/6) = 144/3024.
• BBVV ® Admite seis permutações.
p{VVBB, VBVB, BVVB, BVBV, BBVV, VBBV} =
6.(2/9).(1/8).(3/7).(2/6) = 72/3024.
Duas bolas de uma cor e duas bolas de cores distintas:
• AABV ® Admite doze permutações.
p{AABV, BAAV, BVAA, AAVB, VAAB, VBAA, ABAV, BAVA, ABVA, AVAB,
VABA, AVBA} = 12.(4/9).(3/8).(3/7).(2/6) = 864/3024
• BBVA ® Admite doze permutações.
p(BBVA, ...} = 12.(3/9).(2/8).(2/7).(4/6) = 576/3024
• VVAB ® Admite doze permutações.
p{VVAB, ...} = 12.(2/9).(1/8).(4/7).(3/6) = 288/3024
Podemos verificar a coerência do cálculo, notando que 24 + 288 +
192 + 96 + 48 + 432 + 144 + 72 + 864 + 576 + 288 = 3024.

Comentário 2 ¾

Nesse modelamento de fenômenos estocásticos, consideramos
eventos sucessivos nos quais a composição das urnas é modificada no
curso do experimento. Tais eventos são denominados extrações sem
reposição. Mas existem eventos que podem ser arbitrariamente repetidos,
sem que as condições iniciais se modifiquem, tais quais o
lançamento de um dado ou de uma moeda. (Obviamente, estamos supondo
dados e moedas ideais, que não se desgastem com o passar do tempo.)
De posse dessas primeiras noções, já podemos resolver o problema
discutido por Cardano e Galilei e referido no item 2.1: “Três
dados são jogados simultaneamente e os resultados obtidos em cada
um deles são somados. O número de partições de nove em três
parcelas é igual ao número de partições de dez em três parcelas.
Mas, experimentalmente, a freqüência relativa de ocorrência de nove
é menor que a freqüência relativa de ocorrência de dez.” (Cf.
FERNANDEZ 1973:30, n. 15; MORGADO et alii 1991:6.)
Confirmemos que o número de partições de nove em três parcelas
é igual ao número de partições de dez em três parcelas.

Lembremo-nos de que os dados hexaédricos apresentam seis faces.
Logo,

9 = 1 + 2 + 6 ® seis permutações
9 = 1 + 3 + 5 ® seis permutações
9 = 1 + 4 + 4 ® três permutações
9 = 2 + 2 + 5 ® três permutações
9 = 2 + 3 + 4 ® seis permutações
9 = 3 + 3 + 3 ® uma permutação
Total: vinte e cinco permutações.
10 = 1 + 3 + 6 ® seis permutações
10 = 1 + 4 + 5 ® seis permutações
10 = 2 + 2 + 6 ® três permutações
10 = 2 + 3 + 5 ® seis permutações
10 = 2 + 4 + 4 ® três permutações
10 = 3 + 3 + 4 ® três permutações
Total: vinte e sete permutações

De fato, os números nove e dez admitem o mesmo número (seis)
de partições distintas em três parcelas. Contudo, as partições do
número nove admitem vinte e cinco permutações enquanto as partições
do número dez admitem vinte e sete permutações. Por outro lado,
três dados podem cair de duzentos e dezesseis (6 × 6 × 6) modos distintos.

Logo, a expectativa de ocorrência da soma nove é 25/216 enquanto
a expectativa de ocorrência da soma dez é 27/216. A
diferença entre as duas expectativas é de ordem menor que 1%, o que
motivou o seguinte comentário por FERNÁNDEZ (1973:30, n. 15): “Notese
que a diferença é pequena, 1/108, o que dá idéia da experiência
desses jogadores [que propuseram o problema a Cardano].”
Adquirida a familiaridade com esses fenômenos aleatórios, já
podemos elaborar uma axiomatização. Doravante, a fim de tornar a
exposição semelhante aos textos disponíveis, usaremos o termo
probabilidade em substituição ao termo expectativa.

Aos teóricos que se debruçaram sobre os fenômenos aleatórios
causava profundo desconforto o uso de tantos vocábulos estranhos à
matemática, tais quais urna, bola, dado, moeda e extração. Sentiram
maior comodidade no recurso ao vocabulário conjuntual, que será empregado
doravante. A expressão calcular a expectativa de um evento
será considerada um sinônimo da locução atribuir um número a uma
parte de um conjunto previamente definido. Tal conjunto será denominado
espaço amostral e designado por A. Mas tal número deve
atender a dois requisitos fundamentais: não ser negativo e não ser
maior que a unidade.

Além disso, deve haver certa coerência na associação entre
as partes de A e as respectivas probabilidades. Vimos que, se dois
eventos forem incompatíveis, a expectativa de sua reunião será a
soma das respectivas expectativas. Ora, dizer que dois eventos são
incompatíveis significa que não podem ocorrer simultaneamente. (Na
descrição anterior, a reunião de eventos incompatíveis era indicada
pela conjunção OU.) Mas dizer que dois eventos não podem ocorrer simultaneamente
equivale a dizer que em sua interseção não existe
ponto algum, isto é, que sua interseção é vazia. Usaremos, pois,
essa propriedade para definir os eventos incompatíveis, isto é:
Diremos que dois eventos E e F (de um mesmo espaço amostral A) são
incompatíveis, se E Ç F = Æ.

Para facilitar a exposição, introduziremos um termo suplementar:
Diremos que uma família D1, D2, ..., Dn constitui uma decomposição
do espaço amostral A, se dois quaisquer membros dessa família forem
disjuntos e se a reunião dessa família coincidir com o espaço amostral
A, isto é, se

• Dados dois quaisquer índices h e k (1 £ h £ n, 1 £ k £ n), Dh Ç Dk
= Æ.

• È {Dh: 1 £ h £ n} = A.

Já podemos enunciar os axiomas iniciais:
Início de uma exposição axiomática ¾

“Whereas the axiomatic method was formerly used
merely for the purpose of elucidating the
foundations on which we build, it has now become
a tool for concrete mathematical research. [...]
It is perhaps proper to say that the strength of
modern mathematics lies in the interaction
between axiomatics and construction.” Hermann
WEYL (1951). A half-century of mathematics, p.
523-524

Sejam um conjunto não vazio A, a que chamaremos espaço
amostral, cujas partes serão denominadas eventos. Atribuiremos a
cada evento E um número, denotado por p(E), a que chamaremos a
probabilidade de E, que atende às condições seguintes:
• 0 £ p(E) £ 1

• Se os eventos E e F forem disjuntos (isto é, se E Ç F = Æ), então
p(E È F) = p(E) + p(F).

• Dada qualquer decomposição {D1, ..., Dn} do espaço amostral A,
p(D1) + ... + Dn} = 1. Equivalentemente, p(A) = 1.

• p(Æ) = 0, isto é, é nula a probabilidade de um evento impossível.
Note-se que os axiomas enunciadas não indicam o modo de
se atribuir uma probabilidade a cada evento. Esse fato já fora
reconhecido por Henri Poincaré, que aventou duas respostas à mesma
pergunta: Quando se lançam dois dados, qual é a probabilidade de
que pelo menos um dos dados apresente a face que mostra o número
cinco?

(a) Como cada dado pode apresentar seis faces, o número de casos
possíveis é trinta e seis e o número de casos favoráveis é onze.
Logo, a probabilidade é 11/36.

(b) O número de casos favoráveis pode ser computado, escolhendo-se
a face cinco de um dado, que se pode combinar com qualquer das
faces do outro dado; logo, esse número é seis. O número de casos
possíveis é o número de escolhas (com repetição) de dois objetos
entre seis objetos, (6 x 6)/2 = 18. Logo, a probabilidade é 6/18
= 12/36.

Perguntava-se Poincaré: “Pourquoi la première manière d’énumerer
les cas possibles est-elle plus légitime que la seconde? En
tout cas, ce n’est pas notre définition [de probabilidade] qui nous
l’apprend. [...] La conclusion qui semble résulter de tout cela,
c’est que le calcul des probabilités est une science vaine, qu’il
faut se défier de cet instinct obscur que nous nommions bons sens
et auquel nous demandions de légitimer nos conventions.” (POINCARÉ
1899:192-193)

Note-se também que os axiomas enunciados tampouco sugerem a
existência de nexos causais entre os eventos e suas expectativas.
Como escreveu WITTGENSTEIN (Tractatus, 5.1361): “Der Glaube an den
Kausalnexus ist der Aberglaube”. [A crença no nexo causal é superstição.]

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4 - Escritos referidos

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