Em um artigo publicado nesse mês no Estadão, o professor Elias Thomé faz um interessantíssimo comentário sobre o livro “O Andar do Bêbado” de Leonard Mlodinow, com pertinentes reflexões, podemos associar tranquilamente com o conteúdo desse blog, caos no mercado financeiro.
Abaixo reproduzo o texto:
Numa pesquisa de 2008, um grupo de especialistas deu nota alta para uma garrafa com etiqueta de US$ 90 e nota baixa para uma outra, com etiqueta de US$ 20, embora os sorrateiros pesquisadores tivessem enchido as duas com o mesmíssimo vinho. Até aí, nada de muito novo quanto à nossa capacidade de projetar expectativas: depois de ouvirem elogios a um filme, futuros espectadores tendem a gostar mais dele. A novidade é que, no mesmo momento do teste do vinho, a ressonância magnética mostrou que a área cerebral codificadora da nossa experiência do prazer, ficou muito mais ativa quando os voluntários tomavam o vinho que acreditavam ser o mais caro.
Este é um, entre muitos e surpreendentes exemplos contidos em O Andar do Bêbado, do norte-americano Leonard Mlodinow, tradução de Diego Alfaro – uma bem-humorada síntese de recentes pesquisas numa área limítrofe, provisoriamente designada como “ciência da incerteza”. Pouco ortodoxo na sua especialização em física e matemática, Mlodinow foi, entre outras coisas, colaborador de Stephen Hawking em Uma Nova História do Tempo, consultor das séries televisivas Jornada nas Estrelas e MacGyver, além de autor de livros importantes, como O Arco-Íris de Feynman.
“Andar do bêbado”, metáfora usualmente empregada, desde Einstein, para designar o movimento aleatório das moléculas de água, serve para designar a maneira como os incontáveis avanços na informática, nanotecnologia e outras áreas vêm produzindo alterações radicais na compreensão do universo do acaso e do contingente. Nas últimas décadas vem surgindo uma área que reúne muitas disciplinas que se concentram em analisar o modo como as pessoas reagem, julgam e tomam decisões em relação à incerteza e ao acaso. Envolve não apenas a matemática, a física, a estatística e outras ciências tradicionais, como também a psicologia cognitiva, a filosofia, a neurociência – e até a História, já que em face da complexidade cada vez maior dos fenômenos, não é mais possível classificar variáveis com antecedência, mas só em retrospecto. Em quaisquer situações, é necessário olhar pelo espelho retrovisor da história, remontar em detalhes e reconstituir toda a cadeia de eventos passados. Mas nada de voltar a uma história arrumadinha, daquelas que já sabemos o final – pelo contrário, temos que captar aqueles momentos decisivos, contingentes, tão imprevisíveis quanto o andar de um bêbado.
O livro de Mlodinow é um esforço para trazer parte destas pesquisas para o grande público. E ele o faz de uma forma despretensiosa e provocadora, amealhando tanto divertidos exemplos, que vão de Madonna a Stephen King, quanto casos mais sérios, como graves erros médicos ou em processos judiciais decorrentes de falsa compreensão da probabilidade condicional. Explora ainda as inversões, os chamados “paradoxos da loteria”, mostrando que um universo completamente aleatório também seria impossível. Por mais que os cientistas refinem os sistemas de criação de séries aleatórias, não conseguem banir totalmente as regularidades. Uma das tentativas mais criativas veio do crime organizado, quando os mafiosos do Harlem, em 1920, buscaram números para uma loteria ilegal nos 5 últimos algarismos do balanço do Tesouro Federal! Também neste caso não eram totalmente aleatórios, pois números surgidos de maneira cumulativa possuem um viés que tende a favorecer sempre algarismos mais baixos.
Mlodinow também refaz a pouco conhecida história de todos aqueles pensadores que lidaram com a incerteza. E não é uma história fácil de reconstruir, porque, afinal, muitos dos seus especialistas foram pessoas mais preocupadas com magia e apostas, do que com livros e raciocínios abstratos. Mas o leitor pode familiarizar-se com abstratos conceitos da matemática e da estatística, através das histórias de cientistas que também foram, por assim dizer, nas horas vagas, grandes apostadores. Lá estão pitorescas histórias de Gerolamo Cardano, Blaise Pascal, Pierre de Fermat, Jacob Bernoulli, Thomas Bayes e Adolphe Quételet, que Mlodinow retira do ostracismo. Oferece ainda uma interessante releitura de certos conceitos, como o de “homem médio” de Quételet – que foi muito mais um esforço inaudito de leitura e compreensão do universo do acaso e da contingência. No século 19, o discípulo mais inspirado de Quételet foi o historiador (e exímio jogador de xadrez) Thomas Buckle – que aqui no Brasil ficou mais conhecido pela divulgação que Silvio Romero fez de suas teses deterministas mais disparatadas. Inspirado em O Clube Metafísico (premiado ensaio de Louis Menand, ainda não traduzido no Brasil), Mlodinow mostra-nos um outro lado da obra de Buckle, uma precoce paixão em tentar medir o aleatório que, afinal, acabou marcando dois dos seus leitores mais entusiastas: Darwin e Dostoievski.
“Estatística é a ciência que diz que se eu comi um frango e você não comeu nenhum, teremos comido, em média, meio frango cada um.” Assim o humorista Pitigrilli definiu estatística. Mas isto foi no ano de 1933, quando a revolução estatística, derivada das novas e sofisticadas tecnologias, ainda estava engatinhando. Mlodinow mostra que não foi a realidade que se tornou mais aleatória e, sim, as medições que se tornaram infinitamente mais precisas.
Seja como for, a questão mais profunda continua sendo filosófica: o estudo do universo aleatório nos mostra que enxergar os eventos por uma bola de cristal é possível, mas, infelizmente, apenas depois que eles já aconteceram. É muito verdadeiro o ditado “depois da onça morta, todo mundo é caçador”, mas as pessoas agem comumente como se isto não fosse verdade. Todas as teorias da história capazes de abarcar o futuro foram desacreditadas. E isto não apenas porque ruíram todos aqueles governos baseados em ideologias que propalavam conhecer os rumos da história. Explorando as novas ciências da incerteza, Mlodinow vai além, argumentando que a ideia de um futuro completamente permeado pela contingência é uma operação que a mente humana se mostra incapaz de executar, pois até mesmo quando lidamos com a incerteza e o acaso, a parte iluminada do nosso cérebro é a mesma que lida com questões emocionais. Lidamos mal com o acaso: crentes inabaláveis ou incorrigíveis apostadores, nossas máquinas cerebrais incentivam nossa vocação de apóstolos do tudo ou nada. Já as novas ciências da incerteza, mostram que precisamos de gradações de crença, evidências atenuantes e verdades parciais – sempre diferentes de 100 ou 0%. Mlodinow hesita em transferir tudo isso para o mundo ético, mas, ao concluir com a história dos seus pais – que escaparam por pouco da morte em Buchenwald – deixa para o leitor a ingrata tarefa da escolha responsável ou da indiferença moral.
Elias Thomé Saliba é historiador, professor titular da USP e autor, entre outros livros, de Raízes do Riso (Companhia das Letras)
Fonte: Estadão
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