Cérebro turbinado
Estica, puxa, conserta: a tendência de refazer o corpo, propagada graças à glamourização das cirurgias plásticas, chega agora a um órgão escondido, mas tão sujeito à vaidade quanto pernas, narizes e barrigas. A última palavra em aperfeiçoamento humano são as smart drugs (drogas inteligentes), desenvolvidas para tornar a inteligência um dom, digamos, mais democrático - e fazer do cérebro uma supermáquina, literalmente.
Não são apenas substâncias químicas que podem realizar milagres; uma técnica chamada de estimulação magnética transcraniana, que utiliza ímãs para aumentar ou diminuir a atividade em dadas regiões cerebrais, oferece grandes promessas para pacientes de depressão severa e várias outras desordens mentais - mas provou, em experimentos, ser capaz de acelerar a habilidade de resolver problemas lógicos em voluntários saudáveis.
Tais fortificantes cognitivos poderão ser tão comuns como o café dentro de 20 anos, sugerem experts do Foresight, grupo de pesquisadores que, com incentivo da Fundação Nacional de Ciência dos EUA, reuniu-se para discutir os caminhos dessa ciência emergente. As conclusões do encontro dão o que pensar. O painel, constituído por neurocientistas, profissionais de bioética, psicólogos e educadores, foi unânime em afirmar que a era da reforma cerebral já está aí - e as conseqüências disso são ainda bastante imprevisíveis. Nas últimas duas décadas, os cientistas fizeram importantes descobertas sobre quais regiões do cérebro realizam determinadas funções e de que maneira essas áreas interagem para absorver, armazenar e resgatar informações. Pesquisadores também começaram a compreender melhor como e onde nascem os neurotransmissores e quais deles são responsáveis por tarefas mentais específicas. O resultado foi que o campo de atuação se expandiu, e o cérebro começou a ser explorado com mais profundidade.
utilização de substâncias para turbinar a atenção ou outras capacidades cognitivas não é novidade. O café, por exemplo, trabalha dessa forma. A diferença é que as smart drugs oferecem uma versão mais concentrada e mais poderosa dessas armas químicas.
A Ritalina, comumente prescrita para crianças que sofrem de DDA (distúrbio de déficit de atenção), já é usada por estudantes para melhorar seu desempenho. "Não há estudos que comprovem a eficácia do medicamento para outras finalidades", adverte a Novartis, fabricante do medicamento, em e-mail a Galileu.
O Modafinil, voltado para tratar desordens do sono, como a narcolepsia, tem sido empregado para ajudar as pessoas a se lembrarem de números mais eficientemente. Existe ainda um tipo de molécula chamada ampaquina, que aperfeiçoa o trabalho de certos receptores químicos no cérebro, indicando o caminho para futuros medicamentos que possam melhorar a memória de pessoas cansadas.
"Todos esses exemplos foram desenvolvidos para fins terapêuticos", diz James Wilsdon, filósofo da Universidade Oxford que dirige o departamento de ciência e inovação do think tank britânico Demos. "O Modafinil começou a ser explorado pelos militares. Com ele, era possível ficar acordado por até 72 horas com poucos efeitos colaterais. Agora, a droga é usada para melhorar a performance no trabalho."
Motoristas de caminhão e pilotos de aviões há muito utilizam as anfetaminas para evitar a sonolência; universitários vão atrás de cápsulas de cafeína para manterem-se acordados a noite toda. Mas esses estimulantes fornecem efeito temporário e sua atuação é brusca e ampla - eles turbinam o cérebro mexendo com todo o sistema nervoso. As novas drogas, diferentemente, são potencialmente a chave para uma acuidade mental mais direcionada e com melhorias duradouras. Nos Estados Unidos, suplementos nutricionais com a suposta capacidade de melhorar a memória já movimentam um mercado anual de US$ 1 bilhão. E não se sabe ao certo se eles funcionam. As smart drugs, ao contrário, são comprovadamente potentes. E é justamente aí que reside a preocupação. "São substâncias poderosas. Como os esteróides no caso dos atletas, essas drogas não deveriam ser vistas com leveza, como a cafeína", diz Steven Rose, professor de biologia da Open University, no Reino Unido.
Alguns pesquisadores acreditam que o desenvolvimento de drogas de aperfeiçoamento cerebral cada vez mais eficientes vão inaugurar uma era de "neurologia cosmética". Para os experts do Foresight, contudo, essa é uma área muito mais delicada que a adoção de cirurgias plásticas para melhorar a aparência ou o uso de esteróides para aprimorar o desempenho físico - porque mexe com a nossa qualidade humana básica.
Algumas drogas e novas tecnologias, além disso, só melhoraram o desempenho mental dentro da situação controlada de um laboratório; a realidade, porém, pode ser muito diferente. Além disso, as substâncias não têm o mesmo efeito em todas as pessoas. O efeito colateral que a maioria dos cientistas teme não é físico, e sim mental. Uma droga para melhorar a memória pode fazer com que a pessoa se lembre de muitos detalhes, "entupindo" o cérebro. Da mesma forma, um medicamento para aguçar a atenção pode levar o usuário a ficar concentrado em uma tarefa específica, sem reagir a outros estímulos. Quem nota e retém tudo o que vê acaba não compreendendo coisa alguma.
Há, ainda, o risco do vício. Não há evidências que apontem para uma possível dependência física, mas certamente psicológica. Em resumo, as smart drugs mudam a maneira como pensamos. E, com isso, mudam aquilo que somos. A disponibilidade dessas drogas abre um vasto campo para questões éticas e sociais, incluindo-se aí a preocupação com as conseqüências de um mundo em que algumas pessoas poderão ganhar vantagem sobre outras. Ou, ao contrário, que o seu uso diminua a lacuna entre as pessoas inteligentes e as não tão espertas, criando uma homogeneização da capacidade cognitiva humana. "Vamos ter de aprender a fazer parte de um ambiente em que nossos pensamentos, emoções e comportamentos são continuamente modificados por novos agentes farmacêuticos", diz o neurocientista Steven Rose.
Segundo o neurocientista Iván Izquierdo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, as drogas para memória em estudo têm revelado efeitos somente nas amnésias benignas mais intensas de pessoas muito idosas e nos pacientes com Alzheimer leve ou inicial. Ele explica que o estudo sueco de 1997 com ampaquinas (veja quadro à esquerda) não foi reproduzido. "Nenhuma droga foi descrita, de maneira confiável, como útil para melhorar a memória de pessoas normais. Pessoas saudáveis normalmente utilizam seus sistemas mnemônicos sempre ao máximo de sua capacidade disponível. As interferências que podem sofrer são devidas a estresse, ansiedade ou depressão, que se tratam independentemente dos sistemas de memória", conclui Izquierdo.
A monitoração dessas substâncias é outro problema. Os cientistas afirmam que, em breve, teremos de começar a pensar quais dessas drogas seriam aceitáveis em um ambiente escolar. Até testes antidoping, como aqueles a que atletas estão sujeitos em competições, são cogitados. Mas Michael Gazzaniga, diretor do centro de neurociência cognitiva da Universidade Dartmouth, não tem grandes esperanças sobre esse controle. "Já é difícil o bastante realizar esses exames com atletas. Não consigo ver isso funcionando com a população em geral. É muito difícil projetar testes para identificar drogas tão modernas quanto essas", diz o psicólogo. Além disso, afirma Gazzaniga, banir drogas nunca funciona. "É praticamente impossível proibir eficientemente drogas que podem ser compradas pela internet. O melhor a fazer é tentar regular seu uso", opina.
Quase todas as grandes companhias farmacêuticas pesquisam medicamentos capazes de melhorar a memória, alguns já em estágios avançados de testes. Ao mesmo tempo, diversas empresas estão desenvolvendo drogas para apagar memórias indesejadas, como lembranças e eventos traumáticos, para ajudar pacientes com depressão. Ninguém confirma que essas indústrias tenham a intenção de criar smart drugs, mas a idéia de que elas possam ser usadas de maneira alternativa também deve ser considerada.
Hoje, estão em estudo inúmeras drogas que ajudarão pessoas normais a lidar melhor com uma grande variedade de desafios mentais, inclusive suas emoções. Militares estão testando drogas para diminuir o medo, por exemplo, fazendo do combate uma questão puramente cerebral. Mas alguns cientistas estão céticos: um soldado tão avançado, tão destemido, pode ser também muito mais vulnerável ao perigo.
Mas, afinal, vamos nos tornar mais inteligentes? James Wilsdon afirma que sim, pelo menos temporariamente. Testes de QI têm demonstrado um avanço mental significativo em resposta às smart drugs. Mas isso não implica que seremos humanos mais evoluídos. "Pessoas melhores se conseguem com qualidade de vida", diz o especialista. "Temos várias maneiras de melhorar a memória e a cognição - trabalhando menos, por exemplo. Em uma sociedade em que tudo melhora de forma artificial, perdemos a noção do que é normal." Eis aí um erro que coloca em risco qualquer processo evolutivo. (Colaborou Fernanda Colavitti)
FONTE: Editora GLOBO
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